Transcrição completa da entrevista com Miguel Gomes: “É preciso continuar a contar histórias”

Miguel Gomes no 23.º Curtas de Vila do Conde por Lusa / Estela Silva

O realizador Miguel Gomes, 43 anos, apresentou “As Mil e Uma Noites” este fim de semana em Vila do Conde como filme de abertura do Curtas deste ano. Falei com ele numa entrevista para a Lusa que deu origem a duas peças. Como sou um fã incondicional do Miguel Gomes, que considero o melhor realizador português desde que vi “Aquele Querido Mês de Agosto”, decidi publicar a transcrição completa da entrevista aqui. Limpei o texto por questões de fluidez de leitura, que mesmo assim não será perfeita. Foram 45 minutos depois dos dois primeiros volumes e antes do último em que tive dificuldades em expressar-me, mas plenos de satisfação por ser o meu tema de conversa preferido. Não gabo ao Miguel a paciência para fazer múltiplas entrevistas seguidas sobre o mesmo tema, com muitas das mesmas perguntas.

Em Vila do Conde estiveram presentes muitas das pessoas que entraram nos três volumes do filme. Atores profissionais e não-profissionais. Se estão a ler isto já sabem o essencial do monumental trabalho que a equipa encabeçada por Miguel Gomes criou: um grupo de jornalistas recolheu histórias de Portugal entre o verão de 2013 e o de 2014. A ficção nasceu daí.

Este filme é uma resposta ao atual Governo ou ao contexto mais generalizado criado pela “conjuntura”?

Tem que haver melhores razões para fazer filmes, porque se for apenas uma resposta ao Governo deve haver maneiras menos trabalhosas e mais baratas. À forma como se viveu a crise na sociedade portuguesa em geral, acho que o filme é uma reação a isso. É uma reação porque eu tinha previsto fazer um filme num sítio completamente diferente a seguir ao “Tabu”, estávamos em discussões, a estudar possibilidades de fazer esse filme no México que não tinha nada a ver com este, mas senti que, tendo eu oportunidade de filmar, tinha quase uma obrigação de ficar aqui e filmar as histórias que se estavam a passar em Portugal, não para fazer reportagem, mas para tentar ficcionar com as histórias que iam acontecendo na sociedade portuguesa neste momento de crise.

O Governo foi convidado para ver o filme?

Presumo que sim, mas não sou eu que faço essa parte. Acho que foram convidados para estarem membros dos partidos com representação na Assembleia da República.

Como é possível negar a vertente militante do filme ainda por cima tendo em conta que, pelo menos a nível de produção, os três volumes eram para ser estreados antes das eleições em tom de contributo?

É a estratégia do produtor [que curiosamente passava à nossa frente nesse mesmo momento], ele diz que é um contributo para o resultado das eleições e parece-me improvável, não parece que o filme possa ter uma influência tão grande, mas se calhar é ao contrário, se calhar o facto de, não sendo um filme militante, é claramente um filme que tem contornos políticos assumidos e portanto não é um filme neutro. É evidente desde o início de cada volume que eu não tenho grande simpatia por este Governo. Não acho que [o filme] seja militante no sentido em que não tenho um caminho para apontar, não tenho competência e sobretudo não tenho convicção para dizer ‘este é o caminho certo’, não faço ideia, já é difícil tomar decisões mais simples para mim e para minha a vida, agora dizer coisas que tenham a ver com o destino dos outros transcende-me claramente. O que tentámos fazer foi mostrar que eu e a equipa deste filme não temos grande simpatia por este Governo, mas sobretudo não temos simpatia pela forma como os portugueses foram tratados nos últimos anos e tentámos construir histórias para a Xerazade a partir da forma como nós víamos o país, o que se estava a passar em Portugal.

No começo do primeiro volume dizes que estão em Viana do Castelo porque parecia impossível fazer um filme em Portugal naquela altura e não incluir pessoas como os trabalhadores dos estaleiros, mas de alguma forma era isso que estava a acontecer no cinema que se estava a fazer, passando ao lado daquilo que era e é a crise.

Acho que era preciso fazer um filme com as coisas que se estavam a passar, dando espaço para os reais protagonistas dessas histórias poderem aparecer e falar da sua situação, aparecerem no filme, mas também achei que era importante que o filme tivesse espaço para acolher coisas completamente diferentes. Um dos problemas é que nesse mesmo sítio passam-se três coisas ao mesmo tempo: há um realizador que pelos vistos é relativamente incompetente e portanto não sabe o que é que há de filmar, acha que há uma contradição nos pressupostos do filme que ele decidiu fazer, porque, por um lado, quer fazer um filme em que se mostra o mundo real e aquilo que se está a passar, inclusivamente o mais dramático dentro da sociedade portuguesa e, por outro lado, tinha a ambição de fazer uma espécie de adaptação livre de “As Mil e Uma Noites”, ou seja, tentar ter histórias com tudo aquilo que “As Mil e Uma Noites” têm direito, ou seja, génios, acontecimentos maravilhosos, coisas completamente fantasiosas. Parece haver uma contradição entre estes dois polos diferentes, mas fui percebendo à medida que fui fazendo filmes e – para mim aqui foi o momento em que cheguei e me pareceu mais evidente todo um percurso que acho que fiz dentro do cinema – em que de facto aquilo que me interessa não é só filmar o mundo real e os seus protagonistas, mas é também filmar o mundo que é criado pelos medos e pelos desejos das pessoas, ou seja, não só o que se passa, mas também o que as pessoas têm medo que se passe e desejo que se passe. E portanto achei que o filme devia ter isso tudo, desde os trabalhadores dos estaleiros de Viana do Castelo até coisas que não têm absolutamente nada a ver. Há génios e baleias que explodem, uma série de coisas que não se passaram nem nós queríamos fingir que se passam, porque eu acho que é preciso dar ficção às pessoas, é preciso continuar a contar histórias mesmo em momentos em que a realidade é complicada, acho que não se pode perder essa capacidade de continuar a contar. E conta-se a partir de um imaginário que nós podemos partilhar num país num determinado tempo e portanto é desse imaginário que também me propunha partir para fazer um retrato de Portugal neste momento.

Como é que se consegue fazer esse equilíbrio entre o real e a ficção, como tens feito ao longo da tua carreira?

Há um equilíbrio perfeito quando as pessoas estão mortas. Quando as coisas se mexem e as pessoas estão vivas existem desequilíbrios sempre. O que se tratava neste filme era tentar negociar precisamente entre a realidade objetiva, material do mundo, e esse mundo da ficção, que parte dos desejos e medos das pessoas, daquilo que pertence a um lado mais pulsional e se tentava negociar entre uma coisa e outra. E a cada segmento, a cada história da Xerezade, tentávamos negociar equilíbrios diferentes, ou seja, o filme não é constante no sentido em que às vezes a realidade impõe-se de uma forma maior no filme e parece que não há lugar para esse outro mundo da imaginação e há outras vezes em que há o contrário. Esse equilíbrio vai-se sempre procurando, mas só existe a partir de um jogo de desequilíbrios. É preciso que a ficção comece a ganhar um bocado de força relativamente à realidade e depois que a realidade regresse e imponha a sua lógica, mas não sei se o objetivo era chegar a esse equilíbrio. Durante o filme todo trabalhamos com o mundo das histórias como as conhecemos n’”As Mil e Uma Noites” e no mundo da sociedade portuguesa em crise.

É possível pensar que esse imaginário foi – ou é – o que nos falta para ultrapassar uma situação tão dramática como tem sido a dos últimos anos?

Acho que sobretudo não podemos é aceitar a ideia de que numa situação de crise não temos direito a fazer nada. Basicamente foi o que nos disseram, que há que cuidar das coisas práticas e na lista de prioridades criar ficção, contar, não está propriamente no topo da lista. Acho que é preciso continuar a contar porque senão não há memória das coisas. E contar não é só o trabalho que vocês fazem, os jornalistas. A jornalista que trabalhou comigo, a Maria José Oliveira, contou-me há bocado que alguns de vocês, que ontem estiveram aqui a ver o filme disseram-lhe: “Fiquei muito sensibilizado por estas histórias do que se está a passar em Portugal”. Os jornalistas viram isto com novos olhos. Pelos vistos contar dá uma outra dimensão que não é possível fazer nem é o objetivo fazer quando se faz por exemplo reportagem de sociedade ou artigos económicos, quando se faz jornalismo. O filme não está contra o jornalismo, mas oferece uma outra dimensão que não é possível fazer no jornalismo. O meu objetivo não era fazer jornalismo, era oferecer esse lado que acho que me é oferecido pelo facto de poder fazer ficção.

Não tens receio de ao estar ficcionar uma história como a do “Palito” estar a dar-lhe uma dimensão de fantasia que talvez não mereça?

Não concordo. Não me preocupa porque acho que aquela personagem é baseada… Nós podemos reconhecer o caso que lhe deu origem, mas acho que é uma coisa diferente. O que me interessou nessa história do “Palito”, o que despoletou a vontade de a contar foi o facto de o “Palito” ter sido recebido no tribunal precisamente com vivas e cartazes a dizer “és um herói” por ter estado tanto tempo escondido e a GNR não ter conseguido apanhá-lo durante tantos dias. Ou seja, essa mitologia que se desenvolve nestes tempos: alguém que matou duas mulheres, disparou contra a sua ex-mulher e a própria filha, se escondeu e esteve tantos dias escondido, mas que se tornou um herói porque relativamente ao poder, à polícia, conseguiu… diz qualquer coisa sobre a nossa sociedade. Pego nestas histórias que se passam e tento precisamente dar-lhes esses contornos míticos. “As Mil e Umas Noites” é um filme, não é a realidade e portanto acho que não se pode é confundir as duas coisas. Aquele homem não é o “Palito”, é o Simão “Sem Tripas”.

Que reações tiveste das pessoas que ainda não tinham visto os filmes e que entraram neles?

Faço quatro dias em cada sítio, apresento o filme nos festivais, dou entrevistas porque o filme estreia-se, mas estava com muita vontade do momento que vivi ontem [sábado]. De mostrar o filme cá dentro. Obviamente que é um filme sobre Portugal e gostava muito de o mostrar em Portugal e de passar por este momento, que não acontece assim tantas vezes, de ter atores profissionais, alguns deles bastante conhecidos, misturados com pessoas que nós fomos filmando, que viveram as suas próprias histórias como a Fernanda do galo de Resende ou os ex-trabalhadores dos estaleiros navais ou os Magníficos, que eram desempregados em Aveiro quando filmei uma das histórias no final de 2013 e esta mistura é o filme. Acho que estão lá esses dois lados, da ficção e do mundo real, em que todos nós vivemos. E a reação deles acho que foi fantástica, mas tenho que dar o desconto. Havia pessoas emocionadas, acho que gostaram do filme, mas há que dar o desconto porque as pessoas quando entram nos filmes têm uma tendência compreensível para se verem a si próprias ou então reconhecerem os primos todos ou quem é que aparece também. Têm uma relação que não é só com o filme, é com a experiência de ter feito o filme. E a experiência de ter feito o filme para as pessoas que o fizeram é sempre qualquer coisa que faz com que não sejam as mais objetivas. Mas fiquei muito contente porque são pessoas que têm relações com o cinema absolutamente diferentes, que vêm de mundos completamente diferentes e o facto de os terem juntado no filme, mas também aqui na sessão, pareceu-me perfeito.

Tiveste, como em Arganil, esse choque do cinema a chegar a esses locais que não terão uma relação tão próxima com o meio?

No caso do “Agosto”, todos eram não-atores, aqui há uma mistura e na mesma cena temos atores e não-atores, não-atores a representarem personagens que não são eles e depois a serem eles próprios. Também se num filme de seis horas não arranjasse espaço para esta gente toda… Não posso é pedir a um não-ator para fazer coisas de ator. Posso pedir coisas parecidas, mas não se dirige da mesma maneira. Achei que o filme tinha de ser isto tudo.

Como é que foi a reação lá fora a algo que já é comum nos teus filmes, mas no caso ao verem as pessoas mais afetadas de forma mais dura pela crise? Se foi caricatural ou se se sentiram emocionadas?

Obviamente que mostrar um filme na Alemanha e mostrar um filme em Portugal são coisas diferentes. Há uma história chamada “As Lágrimas da Juíza”, que é um longo processo de tribunal, onde se fala de, por exemplo, ‘vistos gold’. Na Alemanha toda a gente pensa que aquilo saiu da minha cabeça, ou que todas as semanas há sorteios de carros de luxo organizados pelos impostos, toda a gente acha que isso é absurdo, que é obviamente invenção minha. Aqui não, as pessoas sabem quem é que teve essas belas ideias e portanto riem-se numa outra relação com o país. Acho que há coisas que podem dizer mais a nós porque as vivemos e sabemos o contexto em que elas apareceram, mas tem a ambição de ter uma relação com os espectadores independentemente. Mesmo na Alemanha houve muitas perguntas sobre a Grécia. E as pessoas na Alemanha estavam muito interessadas nisso e na ideia de que Portugal foi um caso de sucesso. Aquela ideia de que Portugal foi um caso de sucesso, nos portámos todos muito bem, fizemos muitos sacrifícios e não nos portámos mal como os gregos passou. Mas essa é, para mim, a má ficção porque é mentira. Nós em Portugal sabemos que as coisas são bastante mais complexas, que nós não estamos muito bem ainda. Continuamos numa situação complicada e sabemos que esse discurso é uma coisa que é conveniente em termos europeus. Era preciso um caso de sucesso e toca a inventá-lo em Portugal, mas quando me perguntam isso eu digo que uma das razões que me levaram a querer fazer um filme em que a ficção é muito assumida e é quase delirante é para contrapor à má ficção que é a mentira, a mentira dos políticos que fazem de conta de que tudo está bem. E essa é a má ficção porque é a ficção que se finge real, que tenta passar pela real. Na boa ficção, só pode ser a ficção que se assume como ficção, não quer mentir. Que diz: isto é tudo impossível, mas é possível estabelecer uma relação com estas coisas inacreditáveis que nós sabemos que não têm lugar na vida real, mas que nos dizem qualquer coisa sobre nós próprios, mesmo que sejam coisas que não podemos levar a sério, as pessoas estabelecem essa relação porque reconhecem uma verdade qualquer naquele artifício todo e acho que isso é outra coisa que é útil nestes momentos é contrapor à má ficção que é a mentira a ficção que é o inacreditável, as histórias e o poder que as histórias têm para nos mobilizar, nos comover e nos contar coisas de outras maneiras.

Mas é uma linguagem que é possível entender da mesma forma? É possível ser adversária da má ficção? Porque essa está cá todos os dias.

Não tenho a ambição de ser político. Como digo no princípio do filme o meu trabalho é fazer filmes, portanto a única coisa que posso fazer é, à minha maneira, poder reagir àquilo que não me agrada, tentar fazer aquilo que eu posso e o que eu posso não é muito, obviamente não está ao nível do poder. Acho que não conseguia dormir se tivesse tanto poder nas mãos. Não tenho convicções suficientes para dizer aos outros o que é que eles devem fazer com as suas vidas, mas o que eu posso fazer é isto, fazer filmes, contar histórias, mostrar coisas porque tenho esta oportunidade de fazer filmes e poder olhar o meu país com o meu olhar, com o olhar da equipa e das pessoas que entram no filme.

Desculpa insistir neste ponto, mas por que é que achas que não há mais pessoas a fazer isso?

Estás a falar só de Portugal ou de mais?

Podia falar de mais países.

Não sei, acho que não ajuda muito o facto de esta crise ser muito confusa. Não é clara, é um grande novelo. E há versões contraditórias, as pessoas ficam baralhadas. Tenho essa sensação de que entre a conversa punitiva e moralista de “a culpa é vossa que quiseram gastar o que não tinham, agora amanhem-se” há tantas versões. No fundo são simplificações da realidade, mas não consigo responder pelos outros. Tive oportunidade de fazer um filme, achei que devia fazer um filme sobre a crise e que devia fazê-lo desta maneira, pondo a Xerazade a contá-lo, ou seja, assumindo o lado ficcional e às vezes delirantemente ficcional que uma figura como a Xerazade. Compreendendo eu que na nossa sociedade havia histórias tão absurdas que corro o risco de, lá fora, muitas das coisas que partiram do trabalho dos jornalistas serem vistas como delírios da minha parte, dos argumentistas, mas não.

O que é que te fascina tanto no metadiscurso do cinema?

Metadiscurso tem um ar um bocado chato. Não sei se é isso que eu faço. Os próprios filmes pensam o que é ser espectador deste filme. Como é que se pode ser espectador deste filme? Mas isso acontece em todos os meus filmes, é uma coisa que me interessa porque eu antes de ser realizador era espectador e às vezes como espectador sentia-me fascinado por alguns filmes ou repelido por outros e sentia que isso tinha a ver com a relação que eles tinham comigo. A relação que o filme propunha com o seu espectador. Ou dava-me a oportunidade de eu poder quase de forma lúdica entrar no filme, como num jogo, e outros que me diziam “chora aqui”, “ri aqui”, que é uma relação que me interessa muito, muito pouco. Então, o facto de eu às vezes aparecer ou de aparecer a equipa – é a segunda vez a seguir ao “Agosto” – tem a ver com mostrar a estrutura do filme ao espectador. Dizer: o filme vai ser isto e há aqui este espaço todo que vamos percorrer juntos e acho que tem a ver com isso. Tem a ver com outra coisa prática, porque o cinema tem o seu lado prático que é bastante mais importante do que o lado teórico quando se está a fazer um filme. Eu sou muito intuitivo. Às vezes compreendo coisas só depois na montagem, às vezes depois ou, provavelmente, algumas nem chego a compreender. Uma das coisas práticas que se passam é que, por exemplo, neste filme estávamos em Viana do Castelo, íamos falar com alguns trabalhadores dos estaleiros e nesse dia não foi possível fazer essa filmagem e então estava num hotel em Viana com a equipa, tinha a câmara e quando acontece isso tenho sempre a ideia de que temos que filmar com o que há. O que é que há? Havia eu, a equipa, o hotel, eu tive esta ideia, sem saber onde é que entraria no filme, sem ter a certeza de nada, de que poderia fazer uma cena em que o realizador estava angustiado, a equipa preparava-se para umas filmagens, mas o realizador estava a pensar e entra em pânico e foge e a ideia era também fazer ligações dentro da cidade de Viana do Castelo e a equipa a procurar o realizador e a comer ou a fazer patinagem no gelo. Isso tem a ver às vezes com o lado prático. Acho que tudo é possível, tem de haver espaço para tudo.

É por isso que depois dizes que a abstração te causa vertigem [como é dito no começo do primeiro volume]?

Não se pode acreditar em tudo o que se diz nos filmes, mas é verdade que sempre tive grandes problemas com matemática na escola. A abstração é um bocado uma vertigem. Ali naquele momento o que está em questão é uma coisa bastante concreta e ao mesmo tempo estrutural, como fazer alguma coisa que lide com o imaginario delirante de “As Mil e Uma Noites” e ao mesmo tempo tentar fazer um retrato de Portugal nos dias de hoje. E achei que era importante começar por dar esse dilema e fazer o percurso do espectador.

Depois de um filme várias vezes adjetivado como “épico”, o que é que tens programado para o futuro?

Acho que a minha vida nos próximos meses vai continuar a passar muito por este filme. O filme foi comprado em vários países e vou ter de falar sobre o filme, promover o filme, discuti-lo em vários sítios diferentes do mundo. Devo dizer que a experiência de fazer este filme não foi fácil, foi um bocado cansativa. Agora percebo porque é que não há muita gente a fazer este tipo de coisas, isto não é bom para ninguém. E então digamos que foram quase dois anos a fazer o filme em que se trabalhava quase todos os dias e depois acabámos o filme na véspera do festival de Cannes, fomos para Cannes e em Cannes normalmente um realizador apresenta o filme, faz uma festa, bebe uns copos, no dia seguinte está de ressaca e apanha o avião. Aqui não. Aqui era de dois em dois dias que o filme continuava, portanto toda a experiência deste filme foi massiva. Era muito mais esticada no tempo do que o normal e isto continua agora. Fazer a promoção em França, tive um período de entrevistas para o primeiro volume, mas terei de regressar para fazer outra para o segundo e outra para o terceiro. Neste momento, como realizador o que me move verdadeiramente é o desejo, o desejo de filmar qualquer coisa, de fazer um filme, mas de fazer um filme concreto, com determinados personagens, ou passado num determinado lugar, tem que haver uma relação muito forte de desejo para se começar a mobilizar energias para se fazer um filme. Neste momento tenho vários projetos, várias ideias, vários desejos já, mas ainda não estou numa fase em que consiga sair deste caos que está a ser gerado pela promoção deste filme e dizer é este o filme que quero fazer, de entre três ou quatro projetos que tenho. Às vezes, há semanas em que penso que é um, na semana seguinte penso que é outro, provavelmente vai ser uma fusão de dois ou três desses projetos.

O “Tabu” abriu-te portas para fazer este filme. Achas que isso volta a acontecer agora ou ainda não tens noção?

Ultrapassa-me porque não depende de mim, mas acho que sim. Acho que vamos continuar a ter a possibilidade de continuar a financiar um filme com a maior parte do dinheiro fora de Portugal, como foi o caso aqui. Não sei qual foi a percentagem deste filme, mas custou três milhões e dois milhões e tal não são portugueses. Acho que isso vai continuar a acontecer porque o filme correu bem, teve uma boa receção e vai ter visibilidade internacional. A partir do momento em que um realizador tem a sorte de ter reconhecimento internacional é obviamente muito mais fácil aceder aos financiamentos que ainda existem na Europa.

Falaste há pouco de Cannes, sei que o Luís [Urbano, produtor] falou disso na altura, mas não me lembro de ter ouvido declarações tuas sobre o assunto. Foi uma grande desilusão terem ido para a Quinzena dos Realizadores?

Acho que se falou demais disso. Nós obviamente tentámos a competição de Cannes porque é a secção mais importante e onde há mais visibilidade. A partir do momento em que percebemos que era uma impossibilidade não ficámos a chorar, resolvemos que tínhamos uma outra proposta e resolvemos seguir para uma secção onde eu já tinha estado com “Aquele Querido Mês de Agosto”, onde nos propunham um modelo de exibição que não existe em Cannes, fazer três sessões separadas em vários dias, o que criou uma espécie de ritual em Cannes. Cannes, como todos os grandes festivais, tem os seus rituais muito codificados e são assim desde há muito tempo. Os milhares de jornalistas presentes sabem como é que as coisas se passam e o facto de a Quinzena ter-se interessado por esta maneira nova de exibir um filme em Cannes criou uma espécie de ritual paralelo que fez crescer ainda mais as expectativas. Depois de cada volume era preciso esperar mais dois dias para o próximo, o que fazia uma rima com a própria história de “As Mil e Uma Noites” e da Xerezade, para não deixar que o rei lhe corte a cabeça, ter de ir gerindo as expectativas do seu próprio ouvinte, o rei, e interromper a história no momento em que lhe provoque um desejo de ouvir mais. Essa gestão do desejo do espectador, acho que a Quinzena dos Realizadores compreendeu que poderia ser interessante mostrar o filme assim e portanto achámos que era o ideal.

O editorial da Cahiers du Cinema em que vocês são capa dizia que Cannes pode hoje ser visto como o “FMI do cinema”. Concordas?

Não vou comentar isso.

Miguel, para terminar queria perguntar-te como é que viste a transferência do Jorge Jesus para o Sporting?

Acho que ele fez um mau negócio.

Porquê?

És do Sporting?

Nem de um nem de outro.

Porque acho que não vai correr bem. Precisa de ter uma equipa, se o Sporting não compra jogadores, acho que vai ter ali um problema. Com aquela equipa não vai ser campeão.

Utopia rima com misantropia

Featured image

A Austrália continua a ser o país em destaque nesta nova série de textos desde que me decidi a recuperar o blogue. Por acaso. Não por escolha precisa.

De qualquer forma, em causa está Tracks, o filme de John Curran que resulta da adaptação do livro de Robyn Davidson que, por sua vez, se baseia na experiência de Robyn a atravessar o deserto australiano com um grupo de camelos e uma cadela ao longo de mais de seis meses na década de 1970. Se a pergunta automática é “por que é que alguém quereria fazer tal coisa” a resposta de Robyn, no filme e presumo que na vida, é a óbvia: “por que não?”. Recordo-me de a explicação de Philippe Petit para fazer equilibrismo em edifícios altos ser algo semelhante. E ainda bem.

Mia Wasikowska interpreta a personagem principal (com parecenças físicas surpreendentes, como podem comprovar no fim do filme), uma rapariga de idade incerta que quer levar a cabo a dita travessia porque a isso se dispôs e é isso que quer atingir. Filha de mãe que se enforcou e de pai que, a dada altura, faliu, Robyn tem problemas em relacionar-se com as pessoas. Como diz o personagem de Jake Gyllenhaal a dada altura em Nightcrawler, não é que não compreenda as pessoas, é que não gosta delas. No caso de Robyn, as dificuldades são pontuais. Não consegue lidar com a sociedade moderna. Dá-se bem com os aborígenes, com o eremita do deserto, com o casal no meio do nada, com os animais. Não se dá tão bem com os cidadãos da cidade.

Tracks mostra outro interior australiano, mais equilibrado do que os muitos violentos que nos têm chegado daquele país. Nada de mal acontece a Robyn pela mão dos seres humanos. O terreno pode ser inóspito, mas é belo. Até uma cobra – presumidamente venenosa – parece em paz. Robyn quer ser deixada em paz, até certo ponto. Até deixar de querer. A dada altura Robyn diz sentir-se muito sozinha, frase que leva com a inevitável resposta do “sozinhos estamos todos”. Uns mais do que os outros. Umas vezes mais do que outras. Estas contradições adolescentes dão uma tónica menos interessante ao filme.

Mia Wasikowska e Adam Driver, dois atores com um grande futuro pela frente (não fosse a sofrível Alice), seguram um filme que facilmente podia resvalar a sério. Wasikowska destaca-se com um brilho subtil, ao nível do que significou no belíssimo Stoker.

Não enche a barriga, mas mata a fome.

Sobre eremitas e caminhadas e afins:

The Strange & Curious Tale of the Last True Hermit, GQ
The Woman Who Walked 10,000 Miles (No Exaggeration) in Three Years, New York Times

Imagem retirada daqui.

He wanted to be a legend

“He didn’t want to be a trend — he wanted to be a legend. That meant controlling his public image: no drunken nights, no false moves. The attention had to be on his work. After Top Gun became the No. 1 box office hit of 1986, Paramount offered to quintuple his salary if he’d rush into Top Gun 2. He said no.

Instead, he agreed to play second fiddle to Paul Newman in Martin Scorsese’s The Color of Money. Money versus Money, swagger versus respect. It’s the most telling choice in Cruise’s career. He seized the chance to learn from, and link himself to, the old-fashioned, closemouthed, serious actor he wanted to become. Forget the new Brat Pack — he’d be the last classic movie star.”

How YouTube and Internet Journalism Destroyed Tom Cruise, Our Last Real Movie Star

Como se a Austrália não fosse distópica o suficiente

Featured image

Tenho um fraco por filmes australianos, de australianos, com australianos. Têm de ter como único elemento comum o serem duros. É um critério aplicável a outras geografias (Roménia, estou a olhar para ti), mas funciona particularmente bem na Austrália.

The Rover, de David Michôd, abre com o contexto de que a ação que se segue tem lugar “10 anos depois do colapso”. Sem mais. Não chega a ser explicado. Só muito mais tarde me recordei desta frase de abertura. A pretensa distopia tem tanto de realidade (digo eu que nunca fui à Austrália) que não me apercebi de que era uma distopia.

Metade do filme passa-se como um western. Se alguma vez pensaram como seria um western hoje, pois bem, seria The Rover se a segunda metade se desenrolasse tão bem como a primeira. Talvez até nisso imite bem os westerns. A segunda metade era sempre menos cativante. Exceto em alguns do Leone. Guy Pearce, cujo personagem não é uma única vez nomeado no filme, é o cowboy de serviço. Os restantes são os futuros mortos de serviço. E depois há Robert Pattinson, que parece querer fazer uma carreira de ator a sério e não só a brincar, com uma voracidade que o levou a dois Cronenbergs para além do desterro australiano.

Pearce, conhecido de Michôd da primeira longa-metragem do realizador (o marcante Animal Kingdom), regressa ao território destroçado do país que já o havia levado ao igualmente excelente The Proposition. Aqui interpreta um homem de nome Eric que vê o carro ser roubado à frente dos seus olhos, procura recuperá-lo e junta à sua busca o irmão (de nome Rey, o papel de Pattinson) de um dos responsáveis pelo roubo do automóvel que captura depois de o encontrar a esvair-se em sangue. Pelo meio morre gente. Pelo meio o argumento tem momentos de brilhantismo:

Rey: There’s a man there he’s got to meet, it’s gonna take two weeks.
Eric: You know this? Or this is what he told you?
Rey: Huh?
Eric: Your brother can’t be trusted. Is this something that you know or is this something that he told you?
Rey: Both those things.

Pearce é impecável, como (quase) sempre. Pattinson esmera-se bastante. Há quem teime em mandá-lo abaixo pelo que fez em Twilight, mas Pattinson é bom. Muito bom. O resto do elenco é competente e os diálogos estão à altura do que é necessário. A estrutura do filme, infelizmente, não está. A segunda metade arrasta-se e o último terço em especial. O filme é curto na sua hora e meia, mas podia ser ainda mais abreviado.

The Rover não esconde elementos, simplesmente não os dá a ver. Por norma é um ponto positivo para a obra em questão. Aqui talvez sejam ocultadas coisas a mais. O que faz com que momentos do filme surjam como desgarrados. A dada altura, Eric é apanhado pelo exército (ou polícia?), presumimos que por ter matado um militar num momento anterior. O diálogo da cena é bom, mas sem compreender o contexto não é possível usufruir da totalidade do que se passa.

De qualquer forma, Michôd consegue criar uma obra sólida, mas menos capaz do que Animal Kingdom, algo que nunca seria fácil. Insere-se na lista de filmes duros e rugosos do interior australiano. Não há praias aqui.

(Imagem retirada daqui.)

Um ano

Foi o melhor e o pior dos tempos, escreveu Dickens. Nem todos os anos poderão receber este rótulo, se calhar quase nenhuns, se calhar todos. Não sei bem. Pouco importa. 2014 foi um ano abismal em termos musicais, mas não no campo do cinema. Com tanta escolha, com tamanha diversidade, dificilmente poderia ser. As listas começaram a chover a partir de novembro ou até mais cedo e não divergiam muito daquilo que era a narrativa central: BoyhoodBirdmanIda, alguns resistentes com Godard, outros com Under the SkinFoxcatcher, prestes a estrear-se em Portugal, ficou-se pelo caminho, depois de ter sido logo apontado como o grande candidato do ano aos Óscares. A competição agora está traçada, até pelos prémios que já passaram e as nomeações que já chegaram.

Feito este preâmbulo de contexto que assinala que o campo da crítica está definido, seguem as minhas escolhas. Ainda tenho muito por ver de 2014, em particular o Cavalo Dinheiro de Pedro Costa e o novo de Lisandro Alonso, meu realizador de predileção do dito cinema lento e que nos brindou com um filme de época em 2014. No entanto, tenho algumas ideias sobre o que foi o meu ano cinéfilo que gostaria de partilhar.

1. O melhor filme sobre a crise financeira foi feito na Bélgica e chama-se Deux Jours, Une Nuit. O primeiro filme dos irmãos Dardenne que vi (há anos que os tenho em lista de espera, nunca aconteceu) revelou-se muito mais fluido do que esperava e, acima de tudo, acutilante. A intocável Marion Cotillard interpreta uma trabalhadora a lidar com a saída de uma depressão e, ao regressar à empresa, descobre que o patrão colocou os seus companheiros perante o seguinte voto: recebem o bónus anual de 1.000 euros e ela é despedida ou ela permanece em funções e perdem o bónus. A história é muito simplesmente a luta por convencer os colegas a votarem nela. Podemos pensar que seria uma escolha que faríamos com facilidade (“claro que escolheria a vida da minha colega, é uma pessoa”), mas ao longo do filme assistimos à exposição de argumentos que vão do legítimo ao profundo egoísmo. A moral do filme – sim, é um filme com moral explícita! – é tão elementar que me leva a perguntar por que não são todos os filmes assim. Marion merece todos os prémios que possa haver este ano. Os Dardenne dão uma estalada aos realizadores do sul da Europa que ficaram a fazer filmes a) desligados da crise, b) com metafísicas incompreensíveis perante problemas tão concretos ou c) tão ideológicos que se tornaram impossíveis de digerir.

2. Christopher Nolan precisa de fazer um filme independente quanto antes. Interstellar é mais um exercício de masturbação abstrata que se reveste daquilo a que eu chamo complexidade aparente. Nolan tornou-se perito nisto. Em The Prestige demonstrou-o pela primeira vez. A intenção de fazer um filme aparentemente denso que é suficientemente complicado para fazer com que as pessoas se sintam ludibriadas nesse sentido, mas ao mesmo tempo simples para estar ao alcance de todos. É o maior fazedor de blockbusters da atualidade, o realizador perfeito para tempos em que as pessoas querem fazer elas as coisas, mas com a estrutura já preparada, ou seja, Christopher Nolan é o realizador-IKEA. Inception foi entretido por ser, como os Batman, um filme de ação. Interstellar quer ser outra coisa. Quer ser o 2001 do século XXI. E não pode ser. Não consegue. Porque o argumento é miserável (cf. a treta sobre o amor transcender tudo), ainda que a ciência esteja certa. Enquanto olhamos para o lado científico, ignoramos o vazio da estrutura.

3. 2014 foi finalmente o ano da consagração do rebelde Linklater através do megalómano, mas bem sucedido projeto que foi Boyhood. O filme podia facilmente ter cinco horas. Depois de o ver lembrei-me de O Melhor da Juventude e das seis horas que tinha e de como passaram tão depressa. É uma história de vida e todas as histórias de vida são interessantes. A filmografia de Linklater é tão dispersa e bizarra que quem gosta dele, como eu, se questionava se alguma vez seria projetado para lá do semi-mainstream em que vivia. Foi. Certo é que a ferramenta da filmagem ao longo de 12 anos é mais mencionada do que a qualidade intrínseca do filme em si, mas Boyhood é muito mais do que um artíficio. Quem cresceu ao longo destas décadas facilmente se relaciona com o filme, pelos objetos culturais com que Linklater lida tão bem, mas vai ainda mais longe. É um filme para todas as eras. Ainda que seja mais para umas do que para outras. Vai arrasar nos Óscares, ainda que não nas interpretações (que são boas, mas não oscarizáveis).

4. O documentário penetrou. Não me lembro de alguma vez ter visto tantos documentários no topo das preferências do ano da crítica. Seja Citizenfour, seja Particle Fever, seja Manakamana ou outros (muitos outros), 2014 deu continuidade a uma tendência que tem vindo a ser marcada ao longo dos últimos anos. The Act of Killing, o documentário sobre Rodriguez, vários outros, conseguiram vincar os trabalhos não-ficcionais junto dos principais canais de cinema. Já não é Michael Moore.

5. Alguns dos meus filmes do ano sem ordem estabelecida que não aquela com que me vão aparecendo na mente:

Ida

Nightcrawler

Deux Jours, Une Nuit

Starred Up

Boyhood

Frank

Enemy

Um WALL·E para maiores de 13 anos

Quando saí da sala de cinema o meu primeiro pensamento foi o que dá título a este texto. Elysium é uma espécie de Wall-E para maiores de 13 anos. Tal como o filme da Pixar era muito bom também a segunda longa-metragem de Neill Blomkamp o é. Muito boa e um dos melhores filmes de ação dos últimos tempos.

Elysium trata-se uma estação espacial em órbita sobre a Terra onde apenas os abastados podem entrar, enquanto “lá em baixo” sobram os pobres e desprovidos, num planeta sobrepovoado num futuro não muito distante da era atual. A cadeia de relações laborais é selvagem. O presidente executivo de uma empresa (habitante da tal estação espacial) ordena a um seu súbdito para não lhe respirar para cima, enquanto esse mesmo súbdito, capataz de fábrica, apregoa o quão sortudos são os operários por terem aquele emprego e os atira para dentro de salas radioativas sem pensar duas vezes. Entretanto, se em Elysium os cuidados médicos são totais e imediatos, na Terra os hospitais têm mais dificuldades do que nunca, o que leva a que sejam realizados voos clandestinos para chegar à ilha espacial, nem que seja por uns minutos apenas, para aceder a uma plataforma médica que cure tudo, desde leucemia a membros trucidados.

Não há metáfora ou paralelo indireto com a atualidade. Não há tentativa de ser subtil. A comparação é clara e óbvia. É um mundo que muitos tememos, a derradeira separação de classes, uns cá em baixo outros lá em cima. Cuidados totais para os ricos, salve-se quem puder para os pobres. A polícia é robotizada e implementa um regime implacável de perpetuação de crime.

No meio disto tudo, os efeitos especiais são espantosos e só peca por as sequências de combate serem impercetíveis, um mal da grande maioria dos filmes de ação modernos (veja-se The Raid: Redemption de Gareth Evans para uma perfeita exceção à regra). Porém, o vilão, protagonizado por Sharlto Copley (o principal de District No. 9), é o melhor que me lembro de ver e ouvir em anos. Culpo o sotaque sulafricano.

Há que realçar o elenco: desde Matt Damon e uma impecável Jodie Foster a Alice Braga como o inevitável – e único ponto fraco do filme – romance, passando por um sempre bom Diego Luna e o infalível Wagner Moura.

Elysium é um filme de ação/sci-fi extraordinário, capaz de nos colar à tela desde o princípio ao fim sem excessos de movimento e uma cadência articulada na perfeição. Pode demorar a arrancar e pode vacilar próximo do fim, mas é um dos pontos altos do ano.

A prisão dourada dos clichés

A Gaiola Dourada, filme de Ruben Alves sobre a comunidade portuguesa em França, tem sido um sucesso desbragado. Parece ter ultrapassado os 150 mil espectadores em Portugal e continuará a muito subir, sem dúvida. No sábado fui ver o filme.

Pensava eu que iria ser uma comédia implacável, consciente dos seus lugares-comuns e capaz de atropelar tudo e todos em nome de uma gargalhada. Enganei-me. Não é uma comédia desregrada e sem limites, que puxa os clichés para a frente e os desfaz através do riso. Não. A Gaiola Dourada assume os lugares-comuns acerca dos emigrantes portugueses em França, sim, isso faz de forma aberta. Porém, fica-se por aí. Não dá o passo em frente e acaba por ser engolida pelos clichés que pretende expor. Os portugueses (essa massa disforme, mas homogénea) não são capazes de ficar contentes quando algo de bom lhes acontece, ficando a remoer nas desgraças possíveis e impossíveis. Ai sim? Pois então vamos dizer isso no filme e vamos mostrar que não conseguimos mostrar o contrário. Vamos falar muito de bacalhau, de vergonha, de culpa, de palavrões (que só um personagem diz com regularidade).

Acredito que o filme seria possível – e tão bem sucedido ou mais – mesmo que procurasse dar a volta aos lugares-comuns. No fim de contas, acaba por ser uma mini-telenovela, uma história de saudade (com a inevitável cena de fado, por-amor-de-deus) e de amor. É banal. Talvez nunca tenha querido ser mais, o que é perfeitamente legítimo, mas parece-me que já era altura de se trabalhar melhor os portugueses emigrantes, em particular os que partiram para França. Esperava muito mais. Nota positiva para as interpretações, quase todas excelentes. Rita Blanco será a nossa atriz mais interessante e Joaquim de Almeida precisa de mais espaço para lá dos vilões que costuma fazer. Bem-vinda de volta, Maria Vieira.